Neste novo contexto econômico, o setor elétrico irá desempenhar um papel fundamental associado às novas tecnologias, como os Recursos Energéticos Distribuídos
A crise econômica decorrente da pandemia da Covid-19 tem suscitado uma série de discussões acerca dos planos de recuperação, políticas públicas e investimentos para os próximos anos. Após medidas iniciais direcionadas à crise sanitária e a soluções emergências para minimamente garantir renda e emprego, a recuperação econômica de longo prazo está associada, grosso modo, a três grandes desafios para os governos:
i. Estimular e garantir a retomada do crescimento econômico;
ii. Promover a criação de empregos; e
iii. Estimular o desenvolvimento sustentável, com foco em fontes de energia renováveis.
Neste novo contexto econômico, o setor elétrico irá desempenhar um papel fundamental associado às novas tecnologias, como os Recursos Energéticos Distribuídos (RED).
Estima-se que os impactos da Covid-19 na economia resultem em uma contração de 6% do PIB mundial e uma taxa de desemprego de 9,2%, em 2020, caso a pandemia seja efetivamente contida e não haja uma segunda onda de contaminações (OECD, 2020). Em função da forte relação entre atividade econômica e consumo energético, as projeções apontam para uma queda da demanda global de energia de 6% (IEA, 2020). Contudo, espera-se que as fontes renováveis ampliem sua participação na matriz energética, graças à operação de nova capacidade, aos menores custos operacionais e ao despacho prioritário, relacionados direta e indiretamente com o processo de descarbonização.
Em um primeiro momento, as emissões de gases de efeito estufa (GEE) vão reduzir de forma significativa, em função do impacto da pandemia sobre a atividade econômica, o comércio e o setor de transportes, demonstrando-se, assim, que são as atividades produtivas a causa central da poluição mundial. No entanto, em períodos de recessão, como na crise de 2008, a retomada econômica esteve associada a um rápido restabelecimento dos níveis de emissões de GEE. Em vista da importância das mudanças climáticas e dos objetivos de desenvolvimento sustentável, as fontes renováveis e a transição energética, alinhadas às estratégias nacionais, devem estar no núcleo central dos planos de recuperação.
No fim de maio, a União Europeia (UE) lançou o Plano de Recuperação com orçamento de € 1,8 trilhão . No cerne do Plano está o incentivo a investimentos em setores e em tecnologias essenciais para a:
i. Transição digital, a exemplo do 5G e da inteligência artificial; e
ii. Transição energética, como o hidrogênio e as energias renováveis offshore, considerados como o elemento chave e diferenciador para o futuro da Europa.
O Plano de Recuperação está alinhado ao Pacto Ecológico Europeu, o qual possui uma estratégia de desenvolvimento sustentável e tem como objetivo central alcançar a neutralidade climática até 2050. Este desafio está associado ao desenvolvimento de uma dupla transição, ecológica e digital, através de diversas metas, como a maior participação (32%) das fontes renováveis na matriz energética. Dentre os resultados almejados pelo Plano, estima-se que o cumprimento das metas relacionadas à energia e à redução de emissões poderiam conduzir a um aumento de 1% do PIB e à criação de cerca de um milhão de novos empregos. Dessa maneira, a “retomada verde” está alinhada com os três desafios da recuperação econômica citados anteriormente.
Seguindo a diretriz orçamentária estabelecida pela UE para fomentar a redução de emissões de GEE, pelo menos 25% do orçamento previsto no Plano de Recuperação deve ser direcionado para questões climáticas e de energia. A título de comparação, o programa de recuperação econômica criado em resposta à crise de 2008 reservou apenas 2% do orçamento para gastos em clima e energia, o que, somado à redução da capacidade de investimentos privados, contribuiu para a manutenção de estruturas produtivas poluidoras e para o rápido restabelecimento do nível de emissões de GEE (ELKERBOUT et al., 2020).
Do orçamento total do Plano de Recuperação, € 750 bilhões (42%) destinam-se ao Next Generation, um instrumento emergencial que reforçará o orçamento da UE através de financiamentos obtidos junto ao mercado financeiro, para o período de 2021-2024. Este instrumento possui três objetivos principais:
i. Favorecer a recuperação dos Estados-Membros;
ii. Estimular a retomada econômica e o investimento privado; e
iii. Retirar lições da crise.
Para tanto, o Next Generation se subdivide em iniciativas que endereçam dimensões específicas, dentre elas: Action Plan on Critical Raw Materials, Horizon Europe e Just Transition Mechanism.
A cadeia de suprimentos de tecnologias renováveis, afetada profundamente pelas medidas de contenção da pandemia e pelos efeitos da Covid-19 sobre a atividade industrial, é um dos temas tratados no Action Plan on Critical Raw Materials. Seu objetivo central é fortalecer, de maneira sustentável, os mercados considerados fundamentais para a mobilidade sustentável, o armazenamento de energia e as fontes renováveis. Ademais, os projetos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) serão incentivados através do reforço de € 30 bilhões no Horizon Europe, destacando e evidenciando o papel crucial das atividades de P&D para a transição em direção de uma economia limpa, circular, competitiva e com impacto neutro no clima (EC, 2020).
No âmbito da criação de empregos sustentáveis, o Just Transition Mechanism apoia os territórios com maiores níveis de emissões de GEE no processo de transição energética, explorando novas oportunidades para criação de empregos e promovendo o desenvolvimento sustentável. O mecanismo inclui projetos de descarbonização, diversificação econômica das regiões, energia, transportes e infraestruturas sociais.
Adicionalmente, os países europeus concordaram em não financiar, através do Just Transition Mechanism, projetos relacionados à energia nuclear ou ao gás natural, em função dos objetivos de longo prazo associados à maior participação de novas fontes renováveis e à redução das emissões de GEE. O Mecanismo é considerado, neste sentido, um dos direcionadores das políticas de longo prazo e “motores para a recuperação” (MAZZUCATO; DIBB; MCPHERSON, 2020).
O arcabouço instituído pela Comissão Europeia através do Plano de Recuperação e os instrumentos de incentivo adjacentes possuem um caráter diretivo, pautado na criação de pacotes e medidas de recuperação nacionais, que internalizam as recomendações da Comissão, considerando suas especificidades e desafios intrínsecos.
Um exemplo seria a Alemanha, que planeja a sua recuperação com vistas à descarbonização da sua economia. O plano de recuperação alemão conta com um orçamento total de € 130 bilhões, sendo que, destes, € 50 bilhões serão destinados a novos investimentos em meio ambiente, sustentabilidade e digitalização. Os recursos públicos serão direcionados exclusivamente para veículos elétricos e híbridos. Além disso, a Alemanha está dando uma importância estratégica ao hidrogênio verde, ou seja, produzido a partir de fontes renováveis de energia.
A descarbonização total dos transportes e de setores da indústria energo-intensivos consiste em uma meta ousada e de difícil alcance, mas a maior economia da UE investirá na ampliação da capacidade instalada de geração renovável em 10 GW, no horizonte até 2040 (CHIARETTI, 2020).
Na França, medidas de recuperação setoriais também têm indicado uma priorização de investimentos renováveis na recuperação econômica. O resgaste de € 11 bilhões à companhia aérea Air France foi condicionado à redução de emissões em voos domésticos em 50%, até 2024, além da meta de 2% dos combustíveis utilizados serem provenientes de fontes renováveis. No setor automotivo, a injeção de € 8 bilhões visa recuperar a indústria após a redução das vendas e, simultaneamente, tornar a França um polo industrial de veículos elétricos na Europa, com a meta de produzir um milhão de carros elétricos, até 2025. Como parte do plano de recuperação do setor, subsídios governamentais são oferecidos a consumidores como incentivo para a substituição de veículos com motor à combustão interna por modelos elétricos.
Já na Espanha, iniciou-se a tramitação do projeto de Lei da Mudança Climática e Transição Energética, com o objetivo de atingir a neutralidade climática e ter um setor elétrico 100% renovável, até 2050. No texto, temas como novas fontes renováveis, armazenamento de energia, eficiência energética e mobilidade sustentável são tratados. Além destes, destaca-se um processo de revisão de subsídios e desinvestimentos em projetos associados aos combustíveis fósseis. Estima-se que a transição proposta resultaria em € 200 bilhões em novos investimentos na próxima década, além da geração de cerca de 300 mil novos empregos por ano.
Em suma, os planos de recuperação econômica, com destaque para o Next Generation, desenvolvido pela Comissão Europeia, evidenciam e destacam as fontes de energia renováveis e o investimento em novas tecnologias como oportunidades de aceleração do crescimento sustentável e da transição energética em curso. Simultaneamente, a premência da agenda climática reafirma a necessidade de se estabelecer um setor de energia limpo como o motor do desenvolvimento econômico no cenário pós-pandemia. A transição energética e as tecnologias limpas, neste sentido, não são apenas protagonistas na crise atual, mas constituem uma parte fundamental, tanto da trajetória de recuperação econômica, quanto da sociedade, como instrumentos dinâmicos pós pandemia. Cabe avaliar, em trabalhos futuros, em que medida as lições aprendidas a partir da análise da experiência internacional, em especial da UE, podem ser traduzidas em recomendações práticas para a retomada da economia brasileira.
Referências Bibliográficas
CHIARETTI, D. Recuperação alemã deixa de lado petróleo e mira energia limpa. Disponível em: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/06/19/recuperacao-alema-deixa-de-lado-petroleo-e-mira-energia-limpa.ghtml. Acesso em: 10.07.2020
EC, European Comission (2020). Europe’s moment: Repair and Prepare for the Next Generation. COM/2020/456 final.
ELKERBOUT, M.; EGENHOFER, C.; NÚÑEZ FERRER, J.; CATUTI, M.; KUSTOVA, I.; RIZOS, V. (2020). The European Green Deal after Corona: Implications for EU climate policy. CEPS Policy Insights.
IEA, International Energy Agency (2020). Sustainable Recovery. IEA, Paris.
MAZZUCATO, M.; DIBB, G.; MCPHERSON, M. (2020). The path to COVID recovery: the urgent need for the EU Green Deal and a new approach to Industrial Strategy. Disponível em: https://medium.com/iipp-blog/the-pathto-covid-recovery-the-urgent-need-for-the-eu-greendeal-and-a-new-approach-to-industrial-e91a4ad5ae7. Acesso em: 10.07.2020
OECD, Organization for Economic Co-operation and Development (2020). OECD Economic Outlook. Volume 2020, Issue 1: Preliminary version. OECD Publishing, Paris.
Nivalde de Castro é Professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do GESEL – Grupo de Estudos do Setor Elétrico. Lorrane Câmara é Pesquisadora Plena do GESEL e doutoranda do PPE-COPPE-UFRJ. Sandra Xavier é Professora do Instituto Federal do Paraná Pesquisadora Associada do GESEL. Caroline Chantre é Pesquisadora do GESEL e mestranda do PPED-IE UFRJ.
Fonte: Canal Energia